A primeira vista o lugar da radioarte parece situado na contramão deste arranjo no dial cada vez mais segmentado. Se a entrada da tecnologia digital nas transmissões das emissoras públicas significar maior fragmentação, isto é, um canal só para música clássica, outro só para música popular, outro só para jornalismo, alguém poderá fazer a pergunta: aonde será encaixada a radioarte?
Verdadeira “trincheira criativa”? Vale lembrar Glenn Gould quando praticava autoexílio na região gélida do pólo canadense para neste isolamento poder criar sem interferências. Entretanto, ao contrário do pianista, a perspectiva de produção de radioarte precisa da comunicação com a audiência para ser oferecida e aferida, num diálogo nascido na premissa daquele rádio em duas vias, emissor-receptor, conclamado por Brecht nos primórdios. Longe da trincheira e do entusiasmo, a questão parece empacada naquela encruzilhada descrita pelo músico e maestro alemão Nikolaus Harnoncourt. O maestro alemão, estudioso do repertório musical dos séculos 17 e 18 defende a percepção de uma sociedade que opõe intelecto e sensibilidade, incentivada na escuta infantilizada, limitada à idéias de beleza. Imagem recorrente, como aquela criança desejando ouvir a repetição intermitente da mesma história: conta mais uma vez!
Don Joyce ao se referir aos formatos de programação disponíveis nas emissoras: …toda nossa vida cultural foi colonizada pelas corporações comerciais e sua irrefreável lógica: transformar tudo sob seu controle em algo inofensivo, de gosto neutro, totalmente previsível, atrativamente empacotado… [1]
Mas algo sempre pulsa no meio, médium, entre e por causa…
Em 1977 o maestro Nelson de Macedo lançava um álbum de gravações a frente do grupo coral Artis Canticus, aonde chamava atenção “Dois Contornos Sonoros”, canção para vozes mistas e rádios de pilha. [2] . Obra do compositor Aylton Escobar, esta peça utilizava emissões de várias emissoras de rádio na formação de uma textura sonora construída no efeito de zapping no dial. Este som um tanto embaralhado, formava massa de sub-texto, imprimindo ritmo às vozes do coral.
Durante os anos 80 o músico Wilson Sukorski formando o grupo NAT- Núcleo de Arte e Tecnologia junto aos artistas plásticos José Wagner Garcia e Mario Ramiro, iria desenvolver trabalhos como o “PTYX”, causando surpresa ao empreender proposta plástico sonora reunida em transmissões interativas de rádio e televisão, numa galeria de arte paulista. [3] …“ esta idéia nasceu da observação daquelas cantoras que quebram uma taça de cristal coma potência de sua voz (…) tocando a freqüência fundamental da taça, (…) notamos que mudava de aspecto, a transparência se tornava uma brancura leitosa, e a taça literalmente andava sobre o balcão de testes. Montamos então o evento em duas etapas: três linhas telefônicas eram utilizadas para transmissão e recepção dos sinais sonoros, seis outras linhas ligavam os espaços com duas estações Intergraf de computação gráfica. Uma cantora, Vânia Bastos, cantava a freqüência fundamental de 421.7 hz no Centro Cultural São Paulo e sua voz era transportada pelo telefone até a Galeria Paulo Figueiredo, distante uns quatro kilômetros de lá.
Na década seguinte, o Museu Kiasma de Helsinque, Finlândia, ecoava os oitocentos aparelhos de rádio empilhados por Cildo Meirelles em sua proposta “Babel”, escultura sonora já descrita como “corte enciclopédico do objeto rádio”…o rádio lida com o espaço de uma maneira peculiar (…) permite um viajar mais ilimitado. Eu tenho uma espécie de fascínio eufônico(…) o rádio me remete muito a esta idéia do distanciamento do sujeito de si mesmo. [4]
Recentemente, idéias de rádio transitam freqüentes na sugestão dos trabalhos do paulista Paulo Nenflídio e suas engenhocas inventivas como o “Rádio Nenflídio”, o “Telembau Telegráfico” ou o “Decabráquito Radiofônico”, manipulados para transmitir e receber mensagens por ondas eletromagnéticas. O “Rádio Nenflídio”, peça exposta pela primeira vez em 2005, utiliza circuito eletrônico, tocadores de CD e MP3, amplificadores estereo. Descrito pelo artista como simulacro de rádio numa caixa de madeira com a aparência de um rádio antigo, contendo uma programação (ruídos e interferências de rádio, programas, entrevistas e experiências sonoras realizadas pelo autor) num aparelho de CD player embutido no objeto. São cinqüenta faixas de áudio que tocam, uma após a outra, aleatoriamente, produzindo a sensação de ser estar ouvindo uma “verdadeira estação de rádio”. [5]
Interessante aqui observar como este “conceito” de emissora radiofônica, assentado em programação seqüencial e repetitiva, é identificado como “verdadeira estação de rádio”. Noção imprópria para aplicação no caso deste “Telembau”, objeto semelhante ao instrumento musical berimbau,
utilizando circuito de rádio para construir um diálogo: …funcionando em par, a uma distância de até trinta metros um em relação ao outro, ao se percutir a corda com a baqueta é enviado um sinal para o outro que ouve as batidas transformadas em “bips”. Dessa forma pode ser utilizado para comunicação em código Morse”. [6]
Este trabalho, ao destacar o código telegráfico sistematizado pelo fotógrafo e pintor norteamericano Samuel Morse, faz convergir as informações presentes na cadeia de invenção dos primórdios, mais distante das “emissoras de verdade”. No mesmo ano de 2006, Nenflídio desenvolveria seu “Decabráquito Radiofônico”, reunindo dez aparelhos de rádio FM com visor digital em caixas de madeira. Este objeto e seus dez braços falantes, possui um teclado com dez teclas. Quando tocadas, acionam o som desses dez rádios, gerando sons emitidos pelos altofalantes instalados nas extremidades dos braços, criando uma polifonia semelhante a um órgão de tubos. Este instrumento de teclas depende da transmissão das emissoras locais, desta forma, o objeto conecta-se ao lugar por meio de ondas eletromagnéticas, “tornando audível, o invisível”, segundo seu autor.[7] .
Idéias de rádio surgem neste campo dos signos e significados transpostos, mesclando uma história a outra, elementos transbordados como portas de saídas para o pensamento embutido: até que ponto existe rádio nestas propostas ?
No Brasil, embora a emissora pública venha sendo o espaço possível para a produção de programas não alinhados com o padrão geral, focos desta expansão podem ser observados na produção universitária e na otimização oferecida pela radiodifusão multimídia em formados nascentes como o podcasting. Em seu “Música Discreta”, Roberto D’Ugo testa programação alternando informações musicais não convencionais e peças radiofônicas no âmbito da radioarte. Comentando sobre essa iniciativa durante palestra D’Ugo argumentava …a liberdade do podcasting é fascinante. Faz parte desta nova vitalidade sonora circulando na rede, uma audioesfera em construção, algo muito além da simples troca de arquivos sonoros (…) e não se trata apenas de música. A palavra, o texto, a poesia, a “produção radiofônica”, também elas podem encontrar ouvidos receptivos. Algo que não ocorre na esfera do rádio aberto. Muito otimismo?[8]
[1] Joyce, Don – Get your own Show! Texto no site http://somewhere.org/NAR/
[2] Artis Canticus, regente Nelson de Macedo – Lp da gravadora Phonogram, 1977. acervo Rádio MEC.
[3] descrito por Sukorski em mensagem de e-mail enviada em 1999.
[4] declarações do artista contidas na reportagem “Eleição de Cid Ferreira pode tirar Cildo Meireles da mostra”, em 30 de junho 2006, jornal Folha de São Paulo, caderno E pg. 6.
[5] Paulo Nenflidio – artista plástico paulista, inventor, e construtor de engenhocas premiadas, utiliza em seus trabalhos conceitos de música autônoma, acaso e interatividade. http://paulonenflidio.vilabol.uol.com.br
[6] Telembau Telegráfico – exposto durante o evento O que Eu Faço é Rádio! Exposição e palestras sob curadoria de Lilian Zaremba, acontecido no Museu de Arte Contemporânea- MAC, setembro de 2006, Niterói, Rio de Janeiro. Esta obra foi adquirida pela Coleção Museu ASU, Arizona, Estados Unidos. (fotografias das obras em exposição por Lucia Helena Zaremba).
[7] Decabráquito Radiofônico – peça da Coleção José e Andréia Olympio, São Paulo.
[8] Podcasting, uma nova forma de pensar e ouvir rádio? – palestra proferida durante a exposição O que eu faço é Rádio! , 21 de setembro de 2006, auditório do Museu de Arte Contemporânea- MAC, Niterói, Rio de Janeiro.
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