Rádio: ondas sonoras que atravessam fronteiras

No século XX, o rádio passa a desempenhar uma função importante na nova cultura que emerge juntamente com os meios de comunicação de massa. As emissoras de rádio são ocupadas por artistas que anteveem a dimensão planetária que a arte iria assumir neste século e utilizam o rádio como um meio contemporâneo de criação artística.

A transmissão já histórica de Guerra dos Mundos, realizada por Orson Welles em 1938, surge como uma das primeiras manifestações de arte enquanto forma de intervenção urbana. A irradiação de Welles pode ser considerada uma dramatização em tempo real, cujo cenário é a própria cidade. A transmissão inaugura uma relação entre o espaço público e o espaço privado ainda não experimentada pela cultura anterior. A invasão da Terra por seres extraterrestres, encenada no programa, antecipa uma outra invasão que se avizinhava: a do espaço doméstico pelos meios de comunicação de massa.

Até então, os espaços reservados à arte haviam sido bem delimitados no que diz respeito à relação interior/exterior. Ora se constituíam em espaços públicos, como catedrais, museus, galerias, praças, ora eram espaços interiores em que a arte atendia a uma função decorativa (quadros, esculturas, objetos) ou social e política (retratos de nobres, de personagens ilustres). Esta fronteira entre o público e o privado será rompida e ao mesmo tempo redefinida pelos meios de comunicação de massa, dentre os quais se inclui o rádio.

A utilização do rádio como um meio de criação artística se inscreve no contexto de uma tensão que Pierre Francastel aponta ao analisar o teatro ocidental. Trata-se de uma tensão observada entre o “lugar” imaginário criado pela arte e o lugar físico (a construção arquitetônica) concebido para veicular a obra de arte. Francastel considera que este lugar imaginário é sempre anterior à construção de um espaço físico apropriado à sua difusão:

(…) “um dos problemas mais importantes com que nos defrontamos é o de saber se é em algum momento possível fazer coincidir um lugar material com um lugar imaginário _ este lugar imaginário sendo ele próprio necessariamente anterior ao lugar real que se trata de construir”.[1]

Em relação ao teatro surgido no Renascimento, o historiador francês considera que o ilusionismo característico do imaginário da época, cuja expressão plástica é a perspectiva linear, encontra seu correspondente arquitetônico no palco italiano. Em função desta correspondência, passou-se a identificar o teatro-edifício do século XIX com a própria noção de teatro, o que constitui, para Francastel, um equívoco. Conforme observa: “Os elementos verdadeiramente criadores e vivos do teatro clássico apareceram em salas que não eram aquelas a que estamos habituados a considerar como teatros e a ligar arbitrariamente a eles”.[2]

A tensão, analisada pelo historiador, entre o lugar imaginário criado pela arte e o lugar físico reservado à sua difusão é experimentada, no século XX, no momento em que a arte rompe com os cânones estéticos estabelecidos pelo Renascimento. Neste século, observa-se uma inadequação dos espaços instituídos de criação e veiculação da arte em relação ao imaginário artístico contemporâneo. Esta inadequação se dá em relação a diversos elementos: ao suporte, à própria linguagem, aos ambientes reservados à arte.

Nesse contexto, o rádio surge como um espaço de criação e difusão da arte adequado ao imaginário contemporâneo. Que este meio _ o rádio _ seja um ambiente de ondas sonoras, que ele se constitua em um espaço fundamentalmente acústico, torna-o um lugar privilegiado de experimentação sonora, capaz de servir tanto à música quanto a um teatro que explora a plasticidade da voz e suas possibilidades de modulação.

Na década subsequente à transmissão pioneira de Orson Welles, John Cage e Antonin Artaud concebem transmissões radiofônicas, respectivamente em 1941 e em 1948. O programa criado por Artaud, “uma leitura a quatro vozes entremeada de gritos, uivos, efeitos sonoros com tambores, gongos e xilofone”[3], intitulada Para Acabar com o Julgamento de Deus, foi proibido pelo diretor da Radiodifusão Francesa na véspera do dia de sua transmissão, o que levou o diretor do programa a se demitir. “Foram feitas duas transmissões em circuito fechado, para intelectuais convidados que pediram sua liberação”[4], apesar da proibição. As emissões vocais que se integravam ao texto, transcritas abaixo, deveriam, segundo as instruções de Artaud, ser arranjadas “muito precisamente numa sucessão fulminante”.[5]

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Se a irradiação de Artaud se relaciona à poesia experimental desenvolvida por futuristas e dadaístas, a peça radiofônica composta por John Cage, em colaboração com o poeta Kenneth Patchen, aproxima-se das experiências desenvolvidas no campo da música pelo futurista Luigi Russolo. O programa de rádio, encomendado pela CBS, que recebeu de seus autores o título The City Wears a Slouch Hat, originalmente “consistia em uma espécie de catálogo dos ruídos da cidade, considerados como elementos musicais e não apenas como efeitos sonoros”.[6] Não há como deixar de associá-lo ao Despertar de uma Cidade (Risveglio di una Città), música composta por Russolo para os intonarumori, instrumentos produtores de ruído que ele inventou.

Em ambas as peças, o ruído é apresentado como o material de uma nova música, liberta do sistema temperado, que explora a totalidade do campo sonoro. No manifesto futurista A Arte dos Ruídos, Russolo observa: “Com a introdução na música do número e da variedade dos ruídos, tem fim a limitação do som como qualidade ou timbre”.[7]

Em seu texto-manifesto The future of music: Credo, Cage prenuncia:

“Creio que o ruído continuará a ser usado na música e seu uso se desenvolverá até atingirmos uma música produzida através do auxílio de instrumentos elétricos, que tornarão disponíveis para fins musicais quaisquer e todos os sons audíveis”.[8]

As duas peças sugerem uma paisagem sonora, característica das cidades, que se constitui de um emaranhado complexo de ruídos. Se comparamos a difusão das duas obras, a de Russolo, em1914, no palco do Teatro Dal Verme de Milão, que desencadeou uma verdadeira batalha entre futuristas e conservadores na platéia, com troca de socos, tapas e golpes de bengala, e a de Cage e Patchen, realizada nos estúdios da Columbia, levando-se em conta o intervalo de tempo decorrido entre elas, compreenderemos que as estações de rádio desempenharam, na primeira metade do século XX, um papel importante de difusão de uma nova arte sonora, à qual ofereciam resistência os espaços tradicionais de espetáculo. Retomando a tensão assinalada por Pierre Francastel entre o lugar imaginário de criação artística e o espaço físico de sua difusão, verificamos que as emissoras de rádio preencheram uma lacuna criada com o nascimento de uma arte sonora para a qual os circuitos convencionais de exibição não estavam preparados.

As estações de rádio não foram só relevantes pelos programas experimentais que difundiram. Seus estúdios, munidos de modernos equipamentos elétricos e eletrônicos, atraíram músicos e pesquisadores que fizeram deles importantes centros de pesquisa sonora e musical. Na Europa, destacaram-se: a Nederlandsche Radio Unie (NRU), em Hilversum, onde Henk Badings iniciou a composição de peças radiofônicas para fita magnética, no ano de 1952; a Radiodiffusion-Télévision Française (RTF), em Paris, onde o engenheiro Pierre Schaeffer desenvolveu a música concreta; a West Deutscher Rundfunk (WDR), em Colônia, onde Robert Beyer e Herbert Eimer realizaram as primeiras pesquisas de música eletrônica; e a Radio Audizioni Italiane (RAI), fundada por Luciano Berio em 1955, em Milão, onde funcionava um estúdio de Fonologia Musical.

O que tornava estes equipamentos atraentes para os músicos e engenheiros era a possibilidade que eles abriam de trabalhar com o espectro da onda sonora, tratando o som como uma matéria maleável, passível de modulação. O desenvolvimento da acústica havia identificado o som como uma onda vibratória complexa, formada de uma fundamental e seus parciais, desfazendo a noção de nota musical como uma identidade. Os equipamentos oferecidos pelas novas tecnologias respondiam a uma tendência que se manifestava na música desde o serialismo weberniano: a desconstrução da linguagem e dos materiais da arte em suas unidades mínimas. Hans Rudolf Zeller refere-se a este processo ao analisar os paralelos entre a poesia de Mallarmé e a música serial: “(…) o escritor contemporâneo não pode mais prescindir de um estudo da fonética e da fonologia, assim como o compositor (‘depois de Webern’) não pode prescindir de estudos sobre a acústica e a teoria da informação”.[9]

Duas tendências vão se afirmar nas pesquisas desenvolvidas nos estúdios das rádios. Na RTF, os partidários da chamada música concreta partem de fontes sonoras existentes e as submetem a processos de filtragem (síntese subtrativa), superposição e mixagem.  Na WDR, as pesquisas de música eletrônica utilizam ondas sinusoidais, desprovidas de parciais, gerando timbres por um processo de síntese aditiva. Os sons eletrônicos são produzidos em osciladores e geradores de ruídos. Os processos de manipulação da fita magnética consistem na transposição, reversão, corte e superposição (overdubbing). As duas tendências _ a música concreta e a música eletrônica _ acabam sendo combinadas, dando origem à música eletroacústica.

A importância que o rádio desempenha na arte deste século não se restringe à difusão de programas experimentais e às atividades de pesquisa desenvolvidas nos estúdios de suas emissoras. O próprio rádio, enquanto aparelho, é utilizado como fonte sonora de uma nova música, nas composições de John Cage.

No ano subsequente à transmissão radiofônica de The City Wears a Slouch Hat, John Cage compõe Credo in US para uma dança de Merce Cunningham e Jean Erdman. Pela primeira vez, o rádio é utilizado como fonte sonora em uma composição. A partitura inclui um piano, instrumentos de percussão e um rádio ou vitrola.

As instruções indicam: “se for usado um rádio, devem ser evitados noticiários irradiados durante situações nacionais ou internacionais de emergência”. Tudo indica que se trata de uma referência bem-humorada à transmissão de Welles, que alarmou os ouvintes com a possibilidade de uma guerra interplanetária, gerando pânico na cidade de Nova York. Fica evidente que a intenção de Cage é musical e que ele não utiliza o rádio como um veículo de comunicação, mas o explora em suas qualidades sonoras.

CredoinUS

A peça inicia com uma emissão em fortíssimo (ff) do rádio, que decresce até o pianíssimo (pp), preparando a entrada dos instrumentos. Durante toda a música, o som do rádio é trabalhado com variações de intensidade, que vão do pp ao ff, acentuando o início e/ou o fim das seções. A notação é a mesma usada para instrumentos de percussão. A impossibilidade de prever o que será transmitido pelo rádio no momento da execução da peça introduz um elemento aleatório na obra, que constitui um dos traços característicos da poética de John Cage. A utilização do rádio promove ainda uma interpenetração entre o espaço interior e o espaço exterior, que John Cage concebe como um meio de aproximar arte e vida, outro aspecto fundamental de sua poética. A interpenetração se estende a outros elementos da obra: entre instrumentos musicais e instrumentos não-musicais, entre cultura “erudita” e cultura de massa.

O ideal de interpenetração leva John Cage a utilizar transparências em suas partituras, que são superpostas de modo a produzir a simultaneidade dos eventos sonoros. Em Musik Walk (1958), para um ou mais pianistas tocando em um único piano e sons de rádio e/ou discos, as transparências contêm cinco linhas que indicam se os sons serão produzidos no piano (no teclado, nas cordas, na caixa de ressonância) ou se procederão do rádio e/ou dos discos. Cage estende este princípio de interpenetração a algumas de suas obras, possibilitando que elas sejam executadas simultaneamente, como, por exemplo, Ária e Fontana Mix, compostas em 1958.

Em carta endereçada a Paul Henry Lang, em 1956, reproduzida no livro John Cage, de Jean-Yves Bosseur, o compositor norte-americano se refere às mudanças que o uso do rádio provocou em seu pensamento:

“Compor música com meios radiofônicos tornou-me capaz de aceitar não somente os sons do ambiente, mas igualmente os da televisão, do rádio e da Muzak, que se impõem quase por toda parte e de modo constante. Antes, eles constituíam motivo de irritação. Hoje, eles continuam sempre presentes, mas eu é que mudei”.[10]

Em 1951, quase dez anos depois da primeira composição em que utiliza o rádio como fonte sonora, Cage compõe Imaginary Landscape n. IV, para doze rádios e vinte e quatro executantes. A partitura indica as variações de intensidade e a duração das emissões radiofônicas, como em Credo in US. Conta-se que, por ocasião de sua estréia, na Universidade de Columbia, a maioria das emissoras estava fora do ar, o que fez com que a tessitura da música se constituísse de uma alternância de sons e silêncio[11], característica que John Cage explora em sua obra, inspirando-se na música de Anton Webern.

Seguem-se várias composições para rádio, cuja relação apresentamos no apêndice ao final do texto. Em Water Music (1952), um pianista toca e ao mesmo tempo maneja um aparelho de rádio, apitos, bacias d’água e um baralho. A notação indica os números das estações de rádio que o intérprete deverá sintonizar, mesclando-os com os signos musicais convencionais. Transcrevemos a seguir as indicações da primeira página:

Water Music

A utilização do rádio como fonte sonora nas composições musicais de John Cage coloca em questão a divisão que se estabelece, em nossa cultura, entre espaço público e espaço privado, para a qual chamamos a atenção no início do texto. John Cage se empenha em desfazer esta divisão que, para ele, implica uma dissociação entre arte e vida.

Sua música promove uma abertura para o mundo que ele identifica em algumas obras contemporâneas, como as esculturas em arame de Richard Lippold, ou as construções arquitetônicas que se deixam atravessar por grandes vãos, ou a transparência da superfície do Grande Vidro de Marcel Duchamp, obras que possibilitam ver através, dissolvendo as fronteiras entre o exterior e o interior.

Cage quer construir uma música que permita ouvir-através, do mesmo modo que estas obras plásticas e arquitetônicas permitem ver-através delas. A utilização do rádio em sua música cumpre esta função: produzir uma interpenetração entre os espaços interior e exterior de caráter imprevisível e cambiante.

Numa época em que cruzamos a todo instante nas ruas com pessoas encarceradas em seus walkmen,  erigindo paredes auditivas às interferências do exterior, consumidores indiferentes às relações interpessoais e sociais que se insinuam diante deles, nos perguntamos se este não seria o momento de resgatar as experiências realizadas na primeira metade do século por artistas de vanguarda que, através do rádio, projetaram sobre o tecido social a figura da Fita de Möbius, dissolvendo as fronteiras estabelecidas entre interior e exterior, transpondo esta figura do campo da geometria para os planos poético e musical.

RELAÇÃO DAS OBRAS DE JOHN CAGE EM QUE O RÁDIO É UTILIZADO

  1. Transmissões Radiofônicas:
  • The City Wears a Slouch Hat (1941), em colaboração com o poeta Kenneth Patchen. Columbia Broadcasting System.
  • Lecture on the Weather (1975), para doze leitores-cantores e/ou leitores instrumentistas. Colagem de textos de Thoreau, acompanhada de gravação de sons de brisa, fogo e trovões realizada por Maryanne Amacher e de filme de Luis Frangella. Canadian Broadcasting Corporation, programa comemorativo do Bicentenário dos Estados Unidos da América.
  • Roaratorio: An Irish Circus on Finnegans Wake (1979), mesósticos. WDR, Colônia.
  • James Joyce, Marcel Duchamp, Erik Satie: An Alphabet (1982), mesósticos. WDR,  Colônia.

     2.   Composições:

  • Credo in US (1942), para quarteto de percussão, piano e rádio ou vitrola.
  • Imaginary Landscape n. IV (1951), para doze rádios.
  • Water Music (1952), para um pianista acompanhado de um rádio, apitos, bacias d’água e um baralho.
  • Speech (1955), para cinco rádios e um leitor de jornais ou revistas.
  • Radio Music (1956), para um a oito rádios.
  • Music Walk (1958), para um ou mais pianistas e um único piano, utilizando rádio e/ou discos.
  • WBAI (1960), partitura acompanhando performance constituída de leitura ou interpretação instrumental, utilizando gravadores, discos e rádios.[1]

[1] Artigo publicado na revista Rádio Nova, constelações da radiofonia contemporânea, n.3. ZAREMBA, Lilian & BENTES, Ivana (orgs.). Rio de Janeiro: UFRJ, ECO, Publique, 1999, pp. 95-104.


[1] FRANCASTEL, Pierre. “O teatro é uma arte visual?”. Ensaio/Teatro, N.5. Rio de Janeiro: Achiamé, 1983, p. 89.

[2] FRANCASTEL, Pierre. Op. cit., p. 88.

[3] WILLER, Cláudio (org.). Os escritos de Antonin Artaud (“Rebeldes & Malditos”, vol. 5). Porto Alegre: L&PM, 1983, p. 145.

[4] WILLER, Cláudio. Ibid.

[5] WILLER, Cláudio. Op. Cit., p. 146.

[6] BOSSEUR, Jean-Yves. John Cage (“MusiqueOuverte”). Paris : Minerve, 1993. p.16.

[7] RUSSOLO, Luigi. L’art des bruits (“Avant-gardes”). Lausanne : L’Age d’Homme, 1975, p. 81.

[8] CAGE, John. Silence. Middletown: Wesleyan University Press, 1961, pp. 3-4.

[9] ZELLER, Hans Rudolf. “Mallarmé and Serialist Thought”.  Die Reihe, N. 6, Bryn Mawr, Theodore Presser/Universal, 1964, p. 9.

[10] BOSSEUR, Jean-Yves. Op. cit., p.30.

[11] BOSSEUR, Jean-Yves. Ibid.

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